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segunda-feira, 1 de julho de 2013

A Velha Praça dos Peixes

I

Uma mulher parou seu carro na rua mais vazia ao redor da Praça dos Peixes e baixou o vidro, contemplando as árvores que balançavam com o vento. Tinha um olhar brilhante e ao mesmo tempo abatido, acompanhado de suas mãos magras que seguravam firmemente o volante. O carro era de um modelo popular, não muito novo e com a pintura preta meio desgastada pela ação do sol. A porta do lado do motorista tinha um pequeno amassado na lataria, mas que dava para ser notado de longe e caracterizava ainda mais a velhice do automóvel.
A praça para a qual ela olhava estava suja, com garrafas e mais garrafas de bebida vazias jogadas no meio da grama, já um pouco cobertas com terra. Muitos bancos depredados e as três lagoas artificiais que antes haviam ali estavam agora totalmente secas. Nenhum sinal de vida ao redor. O único barulho constante era o do vento gelado daquela tarde de outono em que até o sol resolvera se esconder.
Além da praça onde ainda restava um pouco de civilização, nada mais  havia para observar a não ser mato até cruzar a linha do horizonte. Mas com certeza haveria, em algum lugar, alguém observando-a. Ela podia sentir isso, pois seus olhos refletiam  essa tensão, olhando inquietante para todos os lados.
A mulher que apreciava a singular paisagem daquela praça aparentava cerca de 25 anos. Ela desceu do carro – trajava uma calça jeans clara e uma blusa de lã vermelha, mas seus pés estavam descalços. Tinha o rosto um pouco abatido, mas ainda se viam seus belos traços – o nariz fino, olhos castanhos quase negros e a os lábios pintados com batom rosado. Ostentava lisíssimos cabelos loiros que iam até sua cintura e que se embaraçavam levemente conforme o vento os tocava. As mãos magras trançando uma na outra o tempo todo, e um vestígio de esmalte azul em suas unhas – um sinal de descuido – pois o esmalte era o único acessório que decorava aquelas mãos.
Assim ela foi caminhando lentamente até a praça, seus pés pisando suavemente naquele chão de pedras antigas e, em alguns pontos, na terra úmida descoberta de calçamento.
Ela olhava enternecida toda a secura daquele lugar. As pedras ao redor do que um dia fora uma lagoa estavam totalmente corroídas pelas ações da natureza, bem como todas as flores que ainda se encontravam ali tinham secado por falta de cuidados e de água. A profundidade daquela lagoa não era muito grande e ela foi cuidadosamente descendo pelas pedras até chegar ao fundo, onde imediatamente sentou-se e ficou a apreciar a brisa gélida que tocava sua pele, com melancolia nos olhos e um alívio nos lábios. Toda a inquietude e preocupação que tinham antes no seu rosto desapareceram. Parecia finalmente ter chegado em casa.


No entanto, um homem a observava por detrás de uma árvore, bem escondido. Ele havia tirado os sapatos para não fazer barulho ao caminhar e, quem sabe, desta forma ela não notaria sua presença. Segurava na mão direita algum objeto escondido e caminhava cuidadosamente em direção ao lugar em que a mulher estava.
O homem descia pelas pedras com toda cautela possível para não fazer nenhum ruído e, aproveitando-se do torpor em que ela se encontrava, agarrou-a por trás firmemente, segurando-lhe os braços. Lágrimas saltaram no mesmo instante dos olhos dela.


II

Andrea Staff era uma estudante de medicina de classe média, muitíssimo inteligente. Estava no seu quarto ano na faculdade e há muito tempo vinha se dedicando somente aos estudos. Por motivos diversos (mas que não se sabe quais exatamente), na última semana ela caíra em uma depressão profunda, vendo-se envelhecer e não ter vivido nada de uma vida comum que muitas outras pessoas viviam.
Passou a repugnar a faculdade naqueles dias, não frequentava mais as aulas e nem olhava para os livros. Vivia há anos tão longe de onde havia nascido e crescido que simplesmente se acostumou a essa nova vida, bloqueou em sua memória tudo o que aconteceu antes de vir parar ali. Mas agora esse muro veio abaixo de uma só vez, e ela não conseguia lidar com tudo o que estivera emparedado atrás dele por tanto tempo. Procurou entrar em contato com velhas colegas da época de escola: todas elas casadas, com filhos... Todas elas mulheres!
Sentiu uma inveja daquela simplicidade de vida que a carreira em que escolhera não permitiu que ela tivesse vivido até então. Nem sequer um namorado ela tinha, pois o único homem que amou foi obrigado a deixa-la quando ela se mudou de sua cidade natal.
Foi  um choque muito grande para ela se dar conta de repente de tudo aquilo, e  desesperou-se ao lembrar de sua juventude, os velhos amigos, as bebidas, as conversas... Tudo o que ocorria na Praça dos Peixes aos finais de semana. Fora também nesse lugar que há 5 anos atrás seu namorado a pediu em casamento, numa noite em que estavam sentados sob uma roseira observando aquele lago límpido iluminado por luzes coloridas, onde vários peixes desfilavam sua beleza e a euforia do amor parecia pairar no ar. Um ano depois, naquela mesma maldita praça ela daria a notícia de que estava indo embora, e eles se separariam.
Seu coração quase saía pela boca ao lembrar-se de todos esses fatos que ficaram anestesiados por anos, encobertos por sua obstinação aos estudos médicos. Ela havia chegado tão perto da simples felicidade que agora queria...
De súbito, levantou-se no meio da noite de ontem e arrumou todas as suas roupas em uma mala. Sua colega de quarto acordou espantada com as atitudes de Andrea, e questionou-a:
- Onde você está indo a essa hora?
- Preciso voltar ao meu lugar – respondeu Andrea – preciso sair daqui. De uma maneira ou de outra... Não, não volto mais. Não quero viver mais se isso for o que eu tiver para viver... Eu perdi minha felicidade longe daqui.
- Você está delirando! Durma um pouco, amanhã você pensa melhor nisso. Vai ver que as coisas não são assim. Você não pode simplesmente virar as costas e abandonar tudo. – disse a colega, preocupada.
- Não! – gritou Andrea – Eu vou para onde eu realmente pertenço, aconteça o que tiver que acontecer.
Assim, saiu com seu velho automóvel rumo àquela cidade tão distante de que viera. A colega de quarto imediatamente procurou algum telefone na agenda de Andrea que ficara sobre a mesa, encontrando na primeira página um número com a inicial “R” grafada na frente. Discou o número e falou com ele, o ex-namorado da colega, informando-o que ela saíra desesperada para voltar à sua cidade.

III

Logo que sentiu aqueles braços lhe agarrarem subitamente, Andrea ficou paralisada. Não conseguia gritar ou reagir ao susto daqueles braços fortes que quase lhe esmagavam. Passado o momento do choque, seu olfato se aguçou e ela sentiu um perfume que lhe era familiar, o que fez com que seus olhos vertessem lágrimas mesmo contra sua vontade. Tentou balbuciar algumas palavras, mas nada disse com clareza.
“É ele!” – pensava ela. Sorrindo em meio às lágrimas, queria virar-se para ele, mas aquele abraço lhe continha os movimentos. Desejava contemplar o rosto daquele homem já tão familiar, mas como não podia, jogou-se no abraço dele. Sentiu-se feliz como nunca, acolhida nos braços daquele que seria seu marido se o destino não tivesse interferido.
Aquele abraço exageradamente firme parecia machuca-la, mas ela não se importava. Ela esquecera tudo o que tinha sofrido nesta última semana e assim imaginava os sentimentos de seu amado: intactos, mesmo depois de tantos anos. Impulsos de emoção levavam-na a querer dizer que o amava, que queria estar ali com ele e que tudo que acontecera foi um engano, mas era como se faltasse ar aos seus pulmões para que qualquer mísera palavra pudesse ser dita.
Ele também nada dizia, mas para ela sentir-se abraçada por ele já bastava. Tinha agora mais certeza ainda de que era ali que deveria ficar, junto daquele que outrora abandonou e que agora retomariam todos os planos antes sufocados. Estava tão eufórica que sua respiração tornava-se dificultosa e pesada, ao mesmo tempo em que seu coração disparava a ponto de explodir no peito.
O homem agora afastava os braços do corpo dela, mas sem permitir que ela se virasse de frente para ele. Andrea não entendeu bem o porquê ele fazia aquilo, mas logo que o viu tirando de uma de suas mãos uma longa fita de cetim preta que pertencera a ela, deduziu que queria enfeitá-la como ela fazia há alguns anos: usando um laço de fita no pescoço.
 Eles se sentaram no fundo daquela lagoa seca e, jogando seus longos cabelos loiros para frente, ele passou a fita pelo pescoço dela. Enquanto dava o laço, ela ia se recostando sobre o peito do homem e tentava cada vez mais respirar o ar que ainda conseguia. Sentia-se sufocada de tanta alegria e contentamento por estar ali. Foi fechando seus olhos que antes miravam aquele céu acinzentado daquela bela tarde de outono e, sentiu sua garganta fechar-se totalmente à passagem de oxigênio. Arregalou os olhos repentinamente e tentou em vão levar as mãos àquela fita – o cinza do céu tornou-se negro, e suas mãos caíram no chão.


Andrea Staff estava morta. Seu corpo repousava com um laço negro no pescoço, no fundo da lagoa seca na Praça dos Peixes.

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