A Velha Praça dos Peixes
I
Uma mulher parou seu carro na rua mais
vazia ao redor da Praça dos Peixes e baixou o vidro, contemplando as árvores
que balançavam com o vento. Tinha um olhar brilhante e ao mesmo tempo abatido,
acompanhado de suas mãos magras que seguravam firmemente o volante. O carro
era de um modelo popular, não muito novo e com a pintura preta meio desgastada
pela ação do sol. A porta do lado do motorista tinha um pequeno amassado na
lataria, mas que dava para ser notado de longe e caracterizava ainda mais a
velhice do automóvel.
A praça para a qual ela olhava estava
suja, com garrafas e mais garrafas de bebida vazias jogadas no meio da grama,
já um pouco cobertas com terra. Muitos bancos depredados e as três lagoas
artificiais que antes haviam ali estavam agora totalmente secas. Nenhum sinal de vida ao redor. O único barulho constante era o do vento gelado daquela tarde de outono em que até
o sol resolvera se esconder.
Além da praça onde ainda restava um
pouco de civilização, nada mais havia para observar a não ser mato até cruzar a
linha do horizonte. Mas com certeza haveria, em algum lugar, alguém observando-a. Ela podia sentir isso, pois seus olhos refletiam essa tensão, olhando inquietante para todos os lados.
A mulher que apreciava a singular
paisagem daquela praça aparentava cerca de 25 anos. Ela desceu do carro –
trajava uma calça jeans clara e uma blusa de lã vermelha, mas seus pés estavam
descalços. Tinha o rosto um pouco abatido, mas ainda se viam seus belos traços
– o nariz fino, olhos castanhos quase negros e a os lábios pintados com batom
rosado. Ostentava lisíssimos cabelos loiros que iam até sua cintura e que se
embaraçavam levemente conforme o vento os tocava. As mãos magras trançando uma na outra o tempo todo, e um vestígio de esmalte azul em suas unhas – um
sinal de descuido – pois o esmalte era o único acessório que decorava aquelas
mãos.
Assim ela foi caminhando lentamente até
a praça, seus pés pisando suavemente naquele chão de pedras antigas e, em
alguns pontos, na terra úmida descoberta de calçamento.
Ela olhava enternecida toda a secura
daquele lugar. As pedras ao redor do que um dia fora uma lagoa estavam
totalmente corroídas pelas ações da natureza, bem como todas as flores que
ainda se encontravam ali tinham secado por falta de cuidados e de água. A
profundidade daquela lagoa não era muito grande e ela foi cuidadosamente
descendo pelas pedras até chegar ao fundo, onde imediatamente sentou-se e ficou
a apreciar a brisa gélida que tocava sua pele, com melancolia nos olhos e um
alívio nos lábios. Toda a inquietude e preocupação que tinham antes no seu
rosto desapareceram. Parecia finalmente ter chegado em casa.
No entanto, um homem a observava por
detrás de uma árvore, bem escondido. Ele havia tirado os sapatos para não fazer
barulho ao caminhar e, quem sabe, desta forma ela não notaria sua presença. Segurava
na mão direita algum objeto escondido e caminhava cuidadosamente em direção ao
lugar em que a mulher estava.
O homem descia pelas pedras com toda
cautela possível para não fazer nenhum ruído e, aproveitando-se do torpor em
que ela se encontrava, agarrou-a por trás firmemente, segurando-lhe os braços. Lágrimas
saltaram no mesmo instante dos olhos dela.
II
Andrea Staff era uma estudante de
medicina de classe média, muitíssimo inteligente. Estava no seu quarto ano na
faculdade e há muito tempo vinha se dedicando somente aos estudos. Por motivos
diversos (mas que não se sabe quais exatamente), na última semana ela caíra em
uma depressão profunda, vendo-se envelhecer e não ter vivido nada de uma vida
comum que muitas outras pessoas viviam.
Passou a repugnar a faculdade naqueles
dias, não frequentava mais as aulas e nem olhava para os livros. Vivia há anos
tão longe de onde havia nascido e crescido que simplesmente se acostumou a essa
nova vida, bloqueou em sua memória tudo o que aconteceu antes de vir parar ali.
Mas agora esse muro veio abaixo de uma só vez, e ela não conseguia lidar com
tudo o que estivera emparedado atrás dele por tanto tempo. Procurou entrar em
contato com velhas colegas da época de escola: todas elas casadas, com
filhos... Todas elas mulheres!
Sentiu uma inveja daquela simplicidade
de vida que a carreira em que escolhera não permitiu que ela tivesse vivido até
então. Nem sequer um namorado ela tinha, pois o único homem que amou foi
obrigado a deixa-la quando ela se mudou de sua cidade natal.
Foi
um choque muito grande para ela se dar conta de repente de tudo aquilo,
e desesperou-se ao lembrar de sua
juventude, os velhos amigos, as bebidas, as conversas... Tudo o que ocorria na
Praça dos Peixes aos finais de semana. Fora também nesse lugar que há 5 anos
atrás seu namorado a pediu em casamento, numa noite em que estavam sentados sob
uma roseira observando aquele lago límpido iluminado por luzes coloridas, onde
vários peixes desfilavam sua beleza e a euforia do amor parecia pairar no ar.
Um ano depois, naquela mesma maldita praça ela daria a notícia de que estava
indo embora, e eles se separariam.
Seu coração quase saía pela boca ao lembrar-se
de todos esses fatos que ficaram anestesiados por anos, encobertos por sua
obstinação aos estudos médicos. Ela havia chegado tão perto da simples
felicidade que agora queria...
De súbito, levantou-se no meio da noite
de ontem e arrumou todas as suas roupas em uma mala. Sua colega de quarto
acordou espantada com as atitudes de Andrea, e questionou-a:
-
Onde você está indo a essa hora?
-
Preciso voltar ao meu lugar – respondeu Andrea – preciso sair daqui. De uma
maneira ou de outra... Não, não volto mais. Não quero viver mais se isso for o
que eu tiver para viver... Eu perdi minha felicidade longe daqui.
-
Você está delirando! Durma um pouco, amanhã você pensa melhor nisso. Vai ver
que as coisas não são assim. Você não pode simplesmente virar as costas e
abandonar tudo. – disse a colega, preocupada.
-
Não! – gritou Andrea – Eu vou para onde eu realmente pertenço, aconteça o que
tiver que acontecer.
Assim, saiu com seu velho automóvel rumo
àquela cidade tão distante de que viera. A colega de quarto imediatamente
procurou algum telefone na agenda de Andrea que ficara sobre a mesa,
encontrando na primeira página um número com a inicial “R” grafada na frente.
Discou o número e falou com ele, o ex-namorado da colega, informando-o que ela
saíra desesperada para voltar à sua cidade.
III
Logo que sentiu aqueles braços lhe
agarrarem subitamente, Andrea ficou paralisada. Não conseguia gritar ou reagir
ao susto daqueles braços fortes que quase lhe esmagavam. Passado o momento do
choque, seu olfato se aguçou e ela sentiu um perfume que lhe era familiar, o
que fez com que seus olhos vertessem lágrimas mesmo contra sua vontade. Tentou
balbuciar algumas palavras, mas nada disse com clareza.
“É ele!” – pensava ela. Sorrindo em meio
às lágrimas, queria virar-se para ele, mas aquele abraço lhe continha os
movimentos. Desejava contemplar o rosto daquele homem já tão familiar, mas como
não podia, jogou-se no abraço dele. Sentiu-se feliz como nunca, acolhida nos
braços daquele que seria seu marido se o destino não tivesse interferido.
Aquele abraço exageradamente firme
parecia machuca-la, mas ela não se importava. Ela esquecera tudo o que tinha
sofrido nesta última semana e assim imaginava os sentimentos de seu amado:
intactos, mesmo depois de tantos anos. Impulsos de emoção levavam-na a querer
dizer que o amava, que queria estar ali com ele e que tudo que acontecera foi
um engano, mas era como se faltasse ar aos seus pulmões para que qualquer
mísera palavra pudesse ser dita.
Ele também nada dizia, mas para ela
sentir-se abraçada por ele já bastava. Tinha agora mais certeza ainda de que
era ali que deveria ficar, junto daquele que outrora abandonou e que agora
retomariam todos os planos antes sufocados. Estava tão eufórica que sua
respiração tornava-se dificultosa e pesada, ao mesmo tempo em que seu coração
disparava a ponto de explodir no peito.
O homem agora afastava os braços do
corpo dela, mas sem permitir que ela se virasse de frente para ele. Andrea não
entendeu bem o porquê ele fazia aquilo, mas logo que o viu tirando de uma de
suas mãos uma longa fita de cetim preta que pertencera a ela, deduziu que
queria enfeitá-la como ela fazia há alguns anos: usando um laço de fita no
pescoço.
Eles se
sentaram no fundo daquela lagoa seca e, jogando seus longos cabelos loiros para
frente, ele passou a fita pelo pescoço dela. Enquanto dava o laço, ela ia se
recostando sobre o peito do homem e tentava cada vez mais respirar o ar que
ainda conseguia. Sentia-se sufocada de tanta alegria e contentamento por estar
ali. Foi fechando seus olhos que antes miravam aquele céu acinzentado daquela
bela tarde de outono e, sentiu sua garganta fechar-se totalmente à passagem de
oxigênio. Arregalou os olhos repentinamente e tentou em vão levar as mãos
àquela fita – o cinza do céu tornou-se negro, e suas mãos caíram no chão.
Andrea Staff estava morta. Seu corpo
repousava com um laço negro no pescoço, no fundo da lagoa seca na Praça dos
Peixes.
Comentários
Postar um comentário