As luzes

Tudo estava silencioso e morbidamente escuro. Já eram raros os barulhos de automóveis nas ruas e só as luzes distantes lá embaixo pareciam viver. Os móveis da sala compartilhavam da mesma estagnação e nem o vento que entrava pela janela fazia alguma coisa se mover. Aproximei-me da sacada lá estava ela, em pé, segurando firmemente a grade de segurança, mantinha o olhar fixo ao longe.  Continuei a observar aquela estranha a certa distância e ela nem notava minha presença. Ainda sentia o cheiro forte do seu perfume misturado com absinto.

Fiquei parado ali por uns dez minutos e, no entanto, ela não se movia. O frio forte da alta madrugada não lhe arrancava ao menos um pequeno tremor.

Em um impulso, cheguei mais perto dela e toquei seu ombro. Ela parecia não estar realmente presente, pois nem ao menos virou-se ou esboçou qualquer reação ao meu toque. Resolvi, então, tentar um outro tipo de abordagem e perguntei:

-Não está com frio?

-Não – respondeu ela, e continuou – Você vê aquela luz lá longe?

Eu via muitas luzes, não conseguia distinguir aquela à qual a estranha se referia. Mesmo assim, respondi-lhe:

-Acho que vejo... vejo sim!

-Pensa que lá, tão longe daqui, tem alguma pessoa que possa estar acordando agora enquanto eu ainda nem dormi – disse ela.

-Quem sabe..., mas o que isso importa agora? – Indaguei surpreso.

-Você não vê! – afirmou ela – Você não vê mais que um borrão de luzes agora. Eu vejo, eu vejo a vida lá embaixo, eu enxergo mais do que essas luzes.

Eu comecei a rir, não havia sentido naquelas palavras. Aquela estranha que nem sabia como voltar para a casa e que eu, num gesto momentâneo trouxera para passar a noite no meu apartamento, com certeza estava mais embriagada do que eu imaginei.  Decidi então manter-me em silêncio. Mas ela continuou a falar:

-Você está rindo... Você não consegue ver a poesia que há na vida! – vociferou enfaticamente, com certa rispidez.

-Não há nada para ver ali! – eu disse com firmeza, e continuei – Tudo isso é culpa da bebida, você bebeu demais e agora está delirando.

Ela lançou-me um olhar fixo e disse orgulhosa:

-Se isso é culpa da bebida, fico ainda mais orgulhosa de sentir-me mesmo com um poeta se sentiria! – lágrimas escorriam dos seus olhos, misturadas a um sorriso presunçoso.

Resolvi sentar-me e esperar que aqueles delírios desaparecessem. Em uma ou duas horas poderia levá-la para casa e, então, toda essa situação acabaria e seria apagada para sempre da minha mente. Puxei a cadeira para perto da varanda, sempre a observando caso mudasse de comportamento e resolvesse descansar um pouco assim como eu. Ela, porém, nada fez ou disse. Ofereci-lhe então uma cadeira como a minha e ela simplesmente se recusou meneando a cabeça suavemente.

Continuei a observá-la por mais de meia hora, e ela mantinha-se impassível no mesmo lugar, deslizando a mão sobre a tela de proteção da sacada e com o olhar enfeitiçado por aquelas luzes mortas da madrugada. Arrependi-me instantaneamente de ter achado graça no que ela disse, pois precisava ajudá-la e para isso tinha que ao menos soar compreensivo. Perguntei-lhe então:

-Você mora longe daqui?

-Um pouco – disse, sem virar os olhos para mim.

-Quanto, exatamente?

-Eu não sei, mas não é perto. Deve ser em alguma luzinha daquelas bem lá no fundo, olhe – e apontou o dedo para uma direção na qual havia tantas luzes que era impossível identificar a qual delas a jovem se referia.

-Pode me dizer ao menos que bairro é aquele? – pedi, calmamente.

-Eu não tenho ideia, não sei mesmo...

-Como assim você não sabe?! – disse eu, espantado – Me diga pelo menos em qual parte da cidade fica a sua casa, senão como poderei levá-la embora?

-Eu não sei, juro que não sei. Mas não se preocupe, eu dou um jeito. – Continuou a derramar as palavras vagamente, quase sem mexer os lábios, numa calma assustadora para alguém que, supostamente, estava perdida.

-Me dê sua bolsa! – pedi – Preciso ver se há alguma coisa que indique onde você mora.

-Eu não tenho bolsa, você não viu?! – disse-me ela mostrando as mãos vazias e um sorriso debochado no rosto – Eu só carrego meu dinheiro dentro da bota. Já disse para você não se preocupar! – repetiu, com a voz arrastada.

Neste momento ela sentou-se no chão da sacada, deslizando pela parede e escorando-se nela. Fechou então os olhos e enfim vi que ela apagaria um pouco, quem sabe descansaria. Recostei-me na cadeira e imediatamente o sono me tomou. Devo ter cochilado por uma meia hora e, acordando assustado, percebi que ela não estava mais lá.
            Corri para o banheiro para procurá-la, olhei por todo o apartamento e nada. Não sabia o que fazer, já não tinha ideia de quanto tempo havia passado desde que fechei os olhos, onde ela poderia ter ido se nem sabia para onde deveria ir?

Sem alternativas, fui para a sacada recolher a cadeira e, quando já havia entrado e estava fechando a janela, meu olhar foi estranhamente capturado por aquelas luzes lá embaixo. Elas estavam esvanecendo com os primeiros raios de sol que já despontavam. Olhei, inevitavelmente para a direção que ela havia me apontado e fiquei imaginando se a desconhecida estaria dentro de uma daquelas casas...Por quais luzes passou? Quais guiaram seu caminho? Teria chegado em segurança, onde quer que morasse?

Ri despretensiosamente para mim mesmo. Agora eu é quem estava tomado pela subida e estranha curiosidade causada pela embriaguez daquela moça. Imaginava cada lar, cada família, cada pontinho brilhante no horizonte simbolizando uma vida, uma história, um mundo todo que passa desapercebido aos demais. Seria mesmo necessária uma quantidade relativamente alta de álcool no sangue para podermos enxergar o que está óbvio, mas intangível dentro da nossa realidade egocêntrica?

 Qual daquelas luzes, afinal, representava aquela garota aos olhos do mundo?  Para mim, desde aquele dia, todas elas.


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